INFÂNCIA – Graciliano Ramos em cena
Em Infância, a elipse não é ornamento de estilo, é método de memória. Graciliano recorta lembranças, retém o que feriu e formou, deixa de fora o que a memória não considera essencial. Piacentini apreende essa gramática e a converte em dispositivo cênico: organiza a progressão não por acumulação, mas por montagem por omissão. O que não se diz constitui peso; o que se enuncia com sobriedade ganha ressonância. As pausas não são intervalos inertes: são cortes que reposicionam o foco do espectador; os silêncios não são vácuos, mas campo de forças onde a plateia completa o gesto. A interpretação se sustenta no controle do ritmo e na economia de signos: nenhum sublinhado, nenhum excesso, nenhum efeito que não seja necessário.
O ator-narrador aqui não é expediente literário, mas ponto de vista em cena. Piacentini administra a dualidade temporal da obra – a ingenuidade do menino e a lucidez do adulto que recorda – sem transições espetaculosas. Há um jogo de micro-modulação vocal e endereçamento do olhar que basta para instaurar quem fala, em que tempo e com que distância. Quando a lembrança pede ansiedade, o ritmo acelera; quando a ironia melancólica precisa sedimentar, a fala respira; quando uma figura emerge (um adulto, uma regra, um medo), a linha vocal sofre um deslocamento mínimo, suficiente para delinear presenças sem caricatura. É a técnica do menos aplicada com escrúpulo: não falta nada, porque não sobra nada.

Essa sobriedade abre espaço para a dimensão mais difícil de captar em Infância: o humor melancólico. Graciliano não é humorista; tampouco sentimental. O riso que desponta nos episódios vem em linha baixa, temperado por uma tristeza crítica que não pede piedade. Piacentini lê esse registro com precisão: a ironia nasce da distância entre quem viveu e quem narra; a graça surge do desacordo entre norma e experiência, da observação miúda dos absurdos cotidianos. Em cena, isso se traduz na recusa do efeito fácil: um canto de boca que não vira careta, um silêncio que não vira pose, uma inflexão que sugere a contradição e, ao mesmo tempo, a contém. O riso chega como luz oblíqua – não cega, revela.
A crítica social, eixo subterrâneo de Graciliano, aparece sem sermão. Estão lá as hierarquias domésticas, a disciplina como pedagogia do medo, a religião como ferramenta de enquadramento, a rigidez escolar; mas tudo filtrado pela perspectiva infantil, que preserva ternura sem anestesiar o golpe. A cena pensa porque confia ao espectador a articulação entre gesto e estrutura, episódio e sistema. O trabalho de Piacentini dialoga, aqui, com a tradição do teatro épico: não no jargão, mas no modo de convocar o público a julgar enquanto assiste. A interpretação não pede adesão emocional incondicional; pede atenção – e essa atenção é sua ética.

Alexandre Rosa surge como parceiro de cena, não como ilustrador sonoro. Sua música, multi-instrumental, não descreve; condensa. Motivos mínimos abrem corredores de memória; texturas discretas alteram o eixo da recepção; uma entrada ou uma suspensão instauram fora de campo musical que amplia espaço e afeto sem competir com a palavra. Palavra e som compartilham a mesma economia poética: dizer menos para fazer ver mais.
Os muitos instrumentos em cena não são aparato musical: são objetos cênicos. Em mãos de Alexandre – e sob a descrição precisa de Ney – cada instrumento ganha estatuto de signo; timbre, peso, madeira e posição funcionam como traços de caráter. Quando o narrador apresenta uma viola para a mãe e um violão para o pai, uma passagem que poderia ser trivial torna-se eixo de leitura. Não é ilustração, é metonímia dramática: a música dá corpo ao signo e o objeto devolve à palavra a concretude que o livro preserva por elipse. Trata-se, no limite, de um gestus em chave musical – um gesto-objeto que expõe relações. A operação toca Brecht de viés: convergência de método, sem bandeira.

Há, ainda, uma dimensão de ofício a sublinhar. Piacentini cultiva a técnica invisível – a que sustenta e não se exibe. Nada de virtuosismo a crédito próprio, nada de preciosismo formal: o virtuosismo aqui é instrumental, inteiramente voltado ao objeto. O resultado é uma atuação madura, que não teme a simplicidade porque sabe que a simplicidade é difícil. Essa postura, compartilhada com Rosa, protege Infância de duas tentações: a do sentimentalismo e a da assepsia. Entre a lágrima fácil e a secura estéril, o espetáculo encontra a medida – e é nessa medida que o texto literário se torna presença teatral.
Chama atenção, por fim, a clareza de projeto: trata-se de um teatro de leitura no melhor sentido, capaz de formar plateia sem rebaixar complexidade. Popular porque confia na inteligência do público, rigoroso porque recusa atalhos. A operação é simples de enunciar e complexa de alcançar: transformar literatura em experiência sensorial de pensamento. Não por adição de aparatos, mas por revelação de estrutura. Ao converter a elipse em motor de cena, a montagem nos lembra que lembrar é escolher – e que o que se escolhe calar também fala.
Resta o efeito que persiste quando a sessão termina. Fica-nos a sensação de que, por algumas dezenas de minutos, vimos uma infância que não é a nossa e, ao mesmo tempo, nos reconhecemos nela. Fica-nos o rigor de uma forma que não clama por originalidade, mas por exatidão. Fica-nos, sobretudo, a evidência de que palavra, gesto e som, quando articulados com responsabilidade, bastam. Faz de Infância um cinema da imaginação – preciso, comovente, rigorosamente medido. E, quando a voz projeta – por um instante – aquela lua que não está no palco, a sala inteira a vê: não há truque, há teatro.
Ficha técnica
- Obra-base: Infância, de Graciliano Ramos
- Adaptação: Ney Piacentini
- Concepção / cocriação: Ney Piacentini e Alexandre Rosa
- Composição musical: Alexandre Rosa
- Em cena: Ney Piacentini (ator) e Alexandre Rosa (música)
- Iluminação: Elis Martins
- Fotos, vídeos e artes: João Maria Silva Jr. e Helena Silva Jr.
- Produção: Corpo Rastreado
- Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes
- Iniciativa: Núcleo Rodateatro



Um comentário
Jair Lemos
Excelente análise da peça, no ritmo simbiótica da mesma. Faz com que o espectador projete para fora aquilo que reteve na alma. Quem ainda não viu não sabe o que já perdeu.