A Excelência Artística e o Trabalho Improdutivo
A Excelência Artística e o Trabalho Improdutivo
No século XVIII, a humanidade ainda não possuía um método confiável para decifrar os escritos das civilizações antigas. Pesquisadores interpretavam os textos de maneiras distintas, sem um consenso. Isso mudou quando as tropas de Napoleão encontraram a Pedra de Roseta, um artefato que trazia um mesmo texto registrado em diferentes línguas. Como essas linguagens estavam mortas – ou seja, fixas no tempo –, foi possível compará-las e traduzi-las com precisão.
No teatro, muitos gostariam de ter uma espécie de “Pedra de Roseta” para definir, com clareza e segurança, a excelência artística. Acadêmicos, críticos e artistas frequentemente buscam um critério universal para medir espetáculos, como se a arte pudesse ser avaliada por uma métrica objetiva. Mas a arte cênica, ao contrário dos idiomas extintos, é viva.
A dificuldade de se estabelecer um padrão absoluto vem do fato de que a arte teatral é um processo, não um produto acabado. Muitos coletivos dedicam-se a desenvolver novas linguagens, e isso exige tempo, experimentação e riscos. Diferente do modelo comercial, que busca repetir fórmulas já testadas, esses grupos constroem expressões cênicas em sintonia com seu tempo e seu público.
O Entretenimento Consciente e a Criação Artística
O Entretenimento Consciente é uma abordagem teatral que busca criar uma relação crítica e ativa entre cena e espectador, sem abrir mão do envolvimento emocional. Diferente do teatro tradicional, que muitas vezes separa o prazer estético da reflexão, ou do entretenimento alienante, que reduz a experiência à passividade, o Entretenimento Consciente propõe um teatro que entretém e, ao mesmo tempo, desafia o público a pensar.
Dentro dessa concepção, a excelência artística não pode ser medida por parâmetros fixos. O valor de um espetáculo não está em seguir padrões de mercado, mas em sua capacidade de gerar pensamento, questionamento e diálogo com o público.
A Improdutividade da Criação Artística
Dentro da lógica do capital, a arte que não se submete à produtividade e ao consumo é considerada “improdutiva”. Mesmo quando atinge altos níveis de realização estética e crítica, seu valor não pode ser medido pela rentabilidade. O Entretenimento Consciente valoriza essa improdutividade, pois entende que o verdadeiro teatro não é feito para ser apenas consumido, mas para gerar pensamento, estranhamento e envolvimento ativo do espectador.
O mesmo não ocorre com as grandes produções que seguem o modelo industrial de entretenimento. Elas investem em fórmulas rentáveis, reduzem o risco do erro e privilegiam prazos e retorno financeiro. Curiosamente, muitas dessas fórmulas foram originalmente criadas por grupos independentes, que, no passado, estavam em sintonia com sua época. Mas quando uma forma teatral se cristaliza e se torna apenas um produto, ela perde sua capacidade transformadora.
Diante disso, não faz sentido aplicar critérios tradicionais de “excelência artística” a espetáculos que não foram concebidos como bens de consumo. O Entretenimento Consciente propõe um outro olhar: a excelência de um espetáculo deve ser medida por sua capacidade de gerar pensamento, criar conexão com o público e desafiar convenções, sem abrir mão do prazer estético.
O Cuidado Necessário na Criação
Isso, no entanto, não significa que a experimentação deva ser confundida com descuido. O Entretenimento Consciente não rejeita o rigor técnico – apenas propõe que ele seja tratado como uma escolha estética e não como um critério fixo. Assim como um artesão lapida sua obra, o teatro deve zelar pela qualidade de sua execução.
Existem falhas inaceitáveis, como atores que não compreendem o que interpretam, dicção deficiente e desleixo técnico onde não há justificativa estética. A pesquisa e a experimentação são fundamentais, mas não podem ser desculpa para a falta de preparo. O rigor deve ser redobrado principalmente em produções financiadas com dinheiro público, pois o compromisso com a arte vai além do artista – ele é também um compromisso com a sociedade.
A Arte Além da Mercadoria
Nenhuma expressão artística pode fincar raízes sob as leis do mercado. A cultura, em sua essência, não é uma mercadoria, mas se torna um produto quando se submete exclusivamente ao lucro.
No Entretenimento Consciente, arte e mercadoria não são a mesma coisa. Criar teatro significa criar pensamento, envolver o público e provocar novas percepções sobre o mundo. Isso só acontece quando o trabalho humano não está alienado.
A criação teatral antecede o capitalismo e continuará existindo depois dele. O teatro é, e sempre será, um espaço de resistência, de reflexão e de encontro.