Quando o Teatro Rompe a Passividade

O teatro sempre foi um espaço de questionamento e transformação, mas, em tempos de revoluções tecnológicas e mudanças nos hábitos de consumo, seu papel se torna ainda mais crucial. A capacidade do teatro de envolver o espectador de maneira ativa contrasta com outras formas de entretenimento, que tendem à passividade. Um filme que ilustra bem esse poder do teatro é The Reckoning (2003), dirigido por Paul McGuigan e estrelado por Willem Dafoe. Seu enredo me surpreendeu. A história se passa na Idade Média e acompanha uma trupe de comediantes que apresenta autos bíblicos pelo interior da Inglaterra. Quando o mentor do grupo morre, seu filho, agora sucessor, conversa com os demais integrantes e juntos decidem tentar algo novo. Mas o quê?

No vilarejo onde estão, controlado por um nobre feudal, há uma feira e algum comércio, mas a estrutura social é rígida. Em conversa com os moradores, a trupe toma conhecimento de um crime: um adolescente foi morto, e a acusada pelo assassinato é uma mulher, rotulada como bruxa. Os atores ouvem a versão oficial dos acontecimentos e decidem encenar essa história. Durante a apresentação, algo inesperado ocorre: ao assistirem à peça, os moradores negam a versão oficial e começam a apontar inconsistências. Os atores abandonam o roteiro original e passam a interpretar os relatos do público. O desenrolar dos testemunhos leva a uma conclusão alarmante: o adolescente, na verdade, foi assassinado pelo barão, que havia abusado do menino e criado uma falsa acusação para incriminar a pária do vilarejo. A revolta da população culmina na tomada do castelo.

Esse filme retrata um momento em que a produção artística serviu como catalisador para questionar o meio social no qual as pessoas estavam inseridas. A peça transformou os espectadores em participantes ativos da criação teatral, rompendo com a passividade habitual do público. No entanto, há um paradoxo: enquanto o teatro, nesse contexto, desperta a participação, o público do cinema, por definição, assume um papel passivo.

No século passado, o cinema, o rádio e a televisão forçaram o teatro a se reinventar, buscando em suas raízes uma nova vitalidade. Esses avanços tecnológicos não apenas transformaram a arte e o entretenimento, mas também foram utilizados como instrumentos poderosos para a ascensão da extrema-direita e do fascismo, moldando narrativas e influenciando massas. Hoje, vivemos um momento semelhante: a internet e a inteligência artificial, enquanto ampliam o acesso à produção cultural, também são exploradas para disseminar discursos autoritários e reforçar padrões de consumo que limitam o pensamento crítico. Com a internet e a ascensão da inteligência artificial, a indústria cultural – sempre desenvolvida em sintonia com um mercado consumidor – enfrenta uma crise semelhante à vivida pelo teatro no século XX. Estamos testemunhando uma transformação profunda: os meios de reprodução em grande escala da obra deixaram de ser monopólio do grande capital e se tornaram acessíveis à população. Mais do que isso, a produção audiovisual já não está restrita a grandes estúdios; qualquer pessoa com uma boa ideia, um celular e acesso à internet pode criar e divulgar filmes. Com a IA, essa produção se torna ainda mais automatizada, permitindo a criação de roteiros, atores digitais e até mesmo filmes inteiros sem a necessidade de humanos no processo criativo. Mas isso é realmente desejável? A substituição de artistas por algoritmos pode aumentar a eficiência da indústria cinematográfica, mas levanta questões sobre a essência da arte e o papel do humano na criação. Se os filmes podem ser gerados sem diretores, roteiristas e atores, qual será o impacto na sensibilidade artística e na capacidade do cinema de provocar reflexão genuína? A criação se torna um produto moldado por padrões de consumo e não por experiências humanas, deslocando as pessoas da centralidade da arte para uma posição periférica. É claro que, se a qualidade for razoável e o custo for baixo, essas produções tendem a surgir rapidamente. No entanto, será uma forma de entretenimento totalmente alinhada com os padrões de consumo, reforçando a lógica da produção em massa e a uniformização estética.

O que levou o teatro a se reinventar há cem anos continua sendo um imperativo. Essa necessidade já era percebida por Augusto Boal, que dedicou grande parte de sua obra, especialmente no Teatro do Oprimido, à busca por um espectador ativo e questionador. Suas experiências mostraram como o teatro pode ser um espaço de transformação social, onde a barreira entre palco e plateia se dissolve, permitindo que o público se torne sujeito da cena e da reflexão crítica. O teatro é a arte onde o espectador, por excelência, deve ser questionado e romper com a passividade. Isso se deve à sua característica fundamental: a presença do público durante a realização da obra, tornando o questionamento não apenas possível, mas desejável. Atualmente, o acesso a obras cinematográficas tornou-se praticamente ilimitado, com custo reduzido e ampla facilidade para consumir, produzir e divulgar vídeos rapidamente. As linguagens artísticas se transformam, mas o teatro mantém uma singularidade inigualável: ele é a única expressão artística onde se pode questionar a obra durante sua execução, possibilitando ao público uma postura ativa. Por isso, esse tipo de teatro se torna não apenas relevante, mas urgente.

Não cabe aqui discutir produções teatrais que insistem em competir com o cinema em um jogo já perdido. Como dizia Brecht há 80 anos:

“Tem consequências tremendas, que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho que na realidade os possui, defendem um aparelho que já deixaram de controlar, que já deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio contra os produtores.”

Esse pensamento se torna ainda mais atual com a chegada da IA na produção cultural. Se antes o cinema já afastava o teatro da competição tecnológica, agora essa distância se torna ainda mais evidente. A inteligência artificial pode criar obras fechadas e altamente sofisticadas, mas jamais poderá substituir o teatro em sua essência: um espaço de presença, de encontro e de transformação real.

Os coletivos teatrais podem explorar experiências multimídia e renovar sua linguagem, mas sua força não está em competir com o cinema ou a televisão. A dramaturgia fechada e acabada pertence a esses meios, cujos recursos técnicos foram desenvolvidos para potencializar esse formato de expressão. No entanto, a obra aberta, que convida o espectador a atuar ativamente, é um privilégio exclusivo do teatro.

Cabe ao teatro reafirmar sua essência, estimulando no público a capacidade de questionar e intervir na obra em tempo real. O espectador precisa deixar de considerar natural aquilo que lhe é apresentado e assumir um papel ativo na construção do pensamento crítico. Essa é a missão que o teatro deve reivindicar para si no mundo contemporâneo.