Macbeth em clave paulistana
A ópera como forma de classe — e espelho de São Paulo
Uma resenha desta montagem exige mais do que descrever o canto ou a cenografia. Exige desvelar as forças históricas e sociais que a ópera, como forma, carrega. Elisa Ohtake não propõe um espetáculo sobre o passado; coloca a tradição operística a serviço de um diagnóstico do presente.
Tudo começa pela partitura de Verdi — não como pano de fundo, mas como decisão política materializada em som.
Verdi “socializou” as três irmãs de Shakespeare. Onde o dramaturgo oferece um trio susurrante e elíptico, o compositor cria um coro feminino coletivo, potência sonora, feia, cortante, repulsiva. Nas suas cartas, Verdi foi claro: nada de bruxaria decorativa. A música é feita de cortes e arestas — staccati2, ritmos angulosos, repetições insetídeas, acordes diminutos, cromatismos, madeiras agudas, percussão que arranha. No caldeirão do Ato III, o destino não é lírico: é agressão sonora.
Ohtake lê isso com precisão. Usa 36 vozes femininas — 12 de cada naipe — não como ornamento, mas como realização plena do que Verdi já inscreveu: as bruxas como organismo coletivo que encarna a ideologia da ambição. Não comentam o drama; o empurram. A aspereza multiplica-se por trinta e seis. Surgem em muralha feminina, cada uma com figurino e postura próprios, mantendo a individualidade dentro da massa — o efeito é o de uma máquina cênico-musical que conduz Macbeth ao abismo.

A diferença entre Shakespeare e Verdi é a diferença entre individual e social. Shakespeare dá o enigma do Weird1. Verdi transforma-o em senso comum tóxico — a voz das ruas que naturaliza rapina, cálculo, ganância. Em Ohtake, esse coro é São Paulo invisível mas onipresente: algoritmos que otimizam ganhos, sussurros que legitimam violência, psicologia das massas em poder de coro.
Se as bruxas estruturam o caos, Lady Macbeth é o indivíduo que o nega — até ser consumida por ele.
As projeções de vídeo não mostram delírios abstratos. Mostram-na andando, pensando, criticando — de forma objetiva. Ela não sofre o drama: o examina. Duplicada na tela, narra seus atos e já se critica. Não vive o poder; o expõe enquanto o exerce.
Isso é Brecht, mas não dogmático — é Brecht na linguagem operística. Verdi exige presença total, avassaladora: a música torna o afeto verdade interna inegável. A voz lírica não mente. Ohtake não a nega; a utiliza. A projeção duplica o canto, expõe sua contradição. Lady Macbeth canta a culpa enquanto a vemos pensá-la. A distância entre canto e pensamento é onde a crítica habita.
A segunda operação é a cidade como cenografia viva.
Não há castelo de Birnam. Há São Paulo — não ilustração, mas estrutura material do drama. As projeções mostram a metrópole onde a ambição privada se realiza, onde a violência circula como lógica capitalista. O distanciamento brechtiano grita: “Isto não é a Escócia do século XI; é aqui e agora”. A desigualdade visível, a paranoia racional, a ambição como arma — São Paulo não é cenário; é personagem. As bruxas são a cidade falando. Lady Macbeth é a elite que imagina dominá-la. Macbeth é quem acredita na ascensão porque a cidade a promete todos os dias.

Os cantores não “sofrem” o drama — ele lhes é imposto como estrutura. A música de Verdi é irrevogável. Mas a mise-en-scène recusa o realismo: ritualística, simbólica, construída. O cantor não se esconde na emoção; está exposto pela artificialidade. Dialética fina: o afeto é verdadeiro, mas construído, social, ideológico. O espectador fica preso na tensão entre música e crítica.
Ohtake supera a dicotomia entre ópera culinária e panfleto. Usa a força totalizante da forma — coro multiplicado por 36, massa vocal única da ópera — para criar alegoria sem consolo, só clareza perturbadora.
As bruxas não são destino sobrenatural: são a lógica coletiva que sussurra ambição.
Lady Macbeth não é rainha isolada: é o burguês que descobre, tarde, que a violência retorna como culpa impossível de lavar.
Macbeth é qualquer um que acredita poder subir numa cidade que só sabe descer.
Ao final, não há catarse. Só a pergunta em alta voltagem:
quem são as bruxas que sussurram em nossos ouvidos hoje, e até onde vamos para coroar nossas ambições?
Ficha técnica
- Orquestra Sinfônica Municipal
- Coro Lírico Municipal
- Direção musical: Roberto Minczuk
- Direção cênica e cenografia: Elisa Ohtake
- Regente do Coro Lírico Municipal: Hernán Sánchez Arteaga
- Desenho de luz: Aline Santini
- Figurino: Gustavo Silvestre e Sonia Gomes
- Visagismo: Simone Batata
- Preparação corporal: Roberto Alencar e Elisa Ohtake
- Assistente de direção cênica: Ronaldo Zero
Lady Macbeth
- Marigona Qerkezi (dias 31, 4 e 8)
- Olga Maslova (dias 1, 5, 7 e 9)
Elenco — dias 31, 04, 07 e 09
- Craig Colclough — Macbeth
- Savio Sperandio — Banquo
- Giovanni Tristacci — Macduff
Elenco — dias 01, 05 e 08
- Douglas Hahn — Macbeth
- Andrey Mira — Banquo
- Enrique Bravo — Macduff
Elenco único (todas as datas)
- Isabella Luchi — Lady-in-waiting
- Mar Oliveira — Malcolm
- Julián Lisnichuk — Assassino, Arauto e Criado de Macbeth
- Rogério Nunes — Médico
- Alessandro Gismano — 1ª aparição
- Graziela Sanchez — 2ª aparição
- Cauê Souza Santos — 3ª aparição
- Allyson Amaral — Duncan, Rei da Escócia (ator)
- Maxx Oliveira — Fleanzio (ator)
Elenco de apoio
- Alessandra Helena
- Gregory Henrique Guimarães
- Kaio Borges
- Leila Bass
1 Weird sisters: as “irmãs estranhas” de Shakespeare, não “bruxas” no sentido clássico.
2 Staccato: notas curtas, destacadas, como picadas.