Teatro

Microcosmo do neoliberalismo no palco — Um dia de semana qualquer

Quando a atriz habita a trabalhadora e a precariedade vira forma.

Uma atriz em colapso financeiro habita — e não apenas interpreta — a atendente de supermercado; o palco vira microcosmo social onde arte e trabalho precarizado se espelham. 

Nos anos 1970, mesmo sob uma ditadura, a cena teatral era ativa, com nove apresentações semanais. Hoje, sem políticas contínuas de formação de plateias, a maioria das temporadas se resume a duas ou três sessões. Essa realidade empurra o trabalho para a intermitência e a dependência de editais. É nesse contexto que a combinação entre *Depois do Expediente*, de Franz Xaver Kroetz, e *Um grito parado no ar*, de Gianfrancesco Guarnieri, transposta para São Paulo — onde artistas acumulam funções e raramente vivem de bilheteria —, ganha força. Os problemas agora são outros: o que será encenado é frequentemente decidido por editais ou por departamentos de marketing (leis de renúncia fiscal), gerando grande frustração em quem dedica a vida ao teatro e forçando-o a aceitar atividades com as quais não se identifica. 

Partindo dessa premissa, Sheyla Coelho e João Alves conceberam o projeto, com dramaturgia de Robert Coelho e da própria Sheyla Coelho, e direção de João Alves. Do estudo desse material e da realidade objetiva, surgiu uma peça que propõe um experimento arriscado: dissolver a fronteira entre interpretação e vivência, transformando o palco em microcosmo social. Uma atriz em colapso financeiro encontra na própria precariedade sua matéria-prima. Não se trata apenas de “interpretar” uma atendente de supermercado — trata-se de habitar essa condição, fazendo da sobrevivência um método criativo forçado. 

O uso de video mapping, com projeções móveis e constantes em diferentes superfícies, amplia a ligação da atriz com o público justamente ao evidenciar sua alienação. Ao simular a rolagem incessante de feeds (YouTube, TikTok), a direção materializa no espaço cênico a captura do olhar: vemos, junto dela, o torvelinho de imagens que a descola da realidade. Há aí uma ironia histórica: um recurso cenotécnico que, desde Piscator, foi associado a procedimentos de consciência crítica reaparece — quase um século depois e em plena hiperexposição digital — para expor o efeito inverso. A superabundância de dados e vídeos descontextualizados não ilumina: entorpece. É um acerto de encenação porque traduz formalmente a tese da peça e exige da atriz uma presença afinada com a proposta. 

A peça revela com precisão a simetria entre dois mundos aparentemente distintos: o da arte e o do trabalho precarizado. A atriz sem recursos e a atendente de supermercado ocupam o mesmo território, onde a existência se resume a “dar um jeito” e a criatividade é sufocada pela necessidade. 

Ambas (ou seria a mesma mulher desdobrada?) são consumidas por seus sistemas: uma, pela precarização do trabalho artístico; a outra, pela lógica desumanizante do varejo. A falência criativa da atriz espelha a falência da humanidade da trabalhadora — ambas são peças descartáveis de uma engrenagem maior. 

O fascínio pelas redes sociais funciona como dispositivo revelador: essa paixão, construída por algoritmos, é o mesmo mecanismo que anula a consciência crítica da própria condição. Enquanto consome fantasias, a personagem vê sua realidade desmoronar. As redes sociais não são mero cenário, mas o opiáceo contemporâneo, uma religião que promete salvação por meio de likes. 

Há uma crueldade nessa escolha: o mesmo sistema que explora a atendente é o que lhe vende a fantasia da ascensão. É o capitalismo em sua forma mais pura, criando a ferida e o analgésico ao mesmo tempo. Ao recusar a narrativa do herói ou da redenção, a peça assume uma posição política radical. Não há mecenas, nem influencer salvador, nem virada milagrosa. Resta apenas a violência naturalizada do neoliberalismo: “cabe a ela dar um jeito”. 

Essa frase, um mantra tóxico do empreendedorismo forçado, é exposta em sua brutalidade. “Dar um jeito” é o eufemismo para o abandono social, para a transferência da responsabilidade estrutural ao indivíduo. 

A pergunta central — “como se reconstruir em um mundo fragmentado?” — não é retórica. É a pergunta de milhões ao acordar para mais um dia de luta. A peça não oferece respostas porque não há soluções individuais para problemas coletivos. 

O que ela oferece é um espelho incômodo. Ao confundir atriz e personagem, ao fazer da precariedade método e tema, ela nos força a reconhecer que não há separação entre arte e vida quando ambas são atravessadas pela mesma violência econômica. 

Por fim, a resposta que “ecoa no vazio” — “cabe a ela dar um jeito, como todos nós” — é tanto diagnóstico quanto denúncia. Ela aponta para a solidão fabricada pelo sistema. Mas, ao dizer “como todos nós”, a peça planta uma semente subversiva: o reconhecimento de que a precariedade é compartilhada pode ser o primeiro passo para uma saída coletiva. 

Assim, a peça funciona como dispositivo de conscientização. Ao ver a atriz se perder na personagem, o público é confrontado com sua própria condição. Não somos espectadores seguros, mas atores involuntários da mesma encenação — todos tentando “dar um jeito”, à deriva. 

Cabe salientar: a Quadrilha de Teatro Notívagos Burlescos, grupo de Botucatu com 23 anos de atuação, reafirma aqui sua vitalidade apesar das intempéries. Depois do Expediente é um espetáculo que merece ser visto: retrata um aspecto decisivo da produção teatral paulista e a questiona por dentro, sem se fechar em metalinguagem — fala para o público em geral. 

FICHA TÉCNICA 

Concepção: Sheyla Coelho e João Alves
Direção Geral: João Alves
Dramaturgia: Robert Coelho e Sheyla Coelho
Elenco: Sheyla Coelho, Murilo Andrade e Dael Vasques
Elenco das Projeções: Barbara Eiras, Carlos Lima, Carol Tieghi, Cecília Tortorella, Débora tairini, Erick de Barros, Fernando Vasques, Johnny Faustino, Julio Cesar Gobo, Mimi Tortorella, Patrícia Toledo, Rairi Campos Fazzio, Rodrigo Ribeiro e Tamara Rocha. 
Direção Musical: Dael Vasques e Fernando Vasques
Direção de Movimento: Vinicius Gil
Direção de Imagem e Videomapping: Um Cafofo (André Grynwask e Pri Argoud)
Cenografia: Gabriel Lino e Jaime Pinheiro
Figurino: Verson Souto
Iluminação: Osvaldo Gazotti
Produção Executiva: Isabela Araújo
Assistente de Produção e Contrarregragem: Gabee Laranja
Assistente de Direção: Ana Cunha
Estágio Direção Teatral e Operação de Som: LEHA
Estágio Cenotécnica: Tamara Rocha
Fotos e Vídeos: Olhares Produtora

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