Performance experimental de LABIRINTHOS 2.5
Teatro

LABIRINTHOS 2.5 — o coro como máquina de pensar | Os que lutam

Cia Teatral ENERGÓS • Resenha para o site Os que lutam

Há montagens que voltam aos gregos como quem visita um museu; LABIRINTHOS 2.5, da Cia Teatral ENERGÓS, volta como quem reabre uma oficina. O mito do Minotauro reaparece ali não como peça vitrificada, mas como matéria de trabalho: algo que respira na voz, no corpo e na escuta coletiva, exatamente como acontecia antes da fixação escrita, quando as histórias circulavam em estado vivo, rituais que iam se transfigurando a cada repetição. Este trabalho de resgate vai muito além da qualidade estética; é uma viagem às origens da narrativa oral, um território anterior ao texto onde os mitos eram entidades respirantes.

Essa imersão no mundo antigo revela uma camada de significação mais profunda. Os mitos da Grécia de há três milênios, com sua beleza e brutalidade intrínsecas, não são uma exceção, mas parte de um cânone universal. Ao observá-los, é possível identificar as mesmas lutas fundamentais, os mesmos dilemas éticos e as mesmas estruturas de poder que ecoam nas mitologias de todos os continentes — dos orikis iorubás aos contos dos povos andinos, das epopeias sânscritas às narrativas dos povos originários da Oceania. O que essa similaridade demonstra é que a humanidade, em sua diversidade, compartilha uma linguagem simbólica comum para decifrar o mundo e a própria condição. A grande inovação dos gregos, com figuras como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, não foi criar mitos “mais ricos”, mas ter transformado essas narrativas orais em teatro. Eles institucionalizaram o espaço onde o mito deixava de ser apenas uma história contada para se tornar um objeto de análise pública. A arena teatral tornou-se, assim, o primeiro fórum de crítica e reflexão sistemática sobre as tradições que moldavam a sociedade. Foi um salto do ritual para o debate.

É nesse contexto que a principal escolha de LABIRINTHOS 2.5 — recolocar o coro no centro — ganha todo o seu sentido. Não se trata de uma homenagem arqueológica, mas de um gesto de método radical: devolver ao teatro sua função pública, isto é, a capacidade de converter fábula em análise. O legado mais crucial do teatro grego é, sem dúvida, a criação do coro. Mais do que um conjunto de vozes, ele era a personificação da comunidade, a consciência coletiva que observava, interrogava e comentava as ações dos protagonistas. Era o mecanismo que forçava o público a não apenas sentir, mas a julgar.

A dramaturgia de João Anzanello Carrascoza, construída a partir de fragmentos de duas tragédias perdidas de Eurípides (Theseus e Kretes), traz o mito para a cena com essa ambição. Não se trata de “atualizar” Minos com um decalque contemporâneo, e sim de mostrar como o próprio mito contém uma técnica de leitura do poder. O rei que recebe de Poseidon um touro branco, promete o sacrifício e não cumpre — e depois administra o monstro que nasce desse crime — sabe operar com o medo como linguagem. O labirinto, nesse sentido, é menos arquitetura que condição política: uma organização de corredores, bloqueios e sombras que gere o trânsito dos corpos e afeta a própria possibilidade de ver.

A direção de Leonardo Antunes confere a esse coro um estatuto preciso. Não há massa indistinta acompanhando o “drama dos heróis”. Há uma entidade que pensa em cena e ensina a plateia a pensar: organiza o tempo (marca entradas e suspensões), dá foco (aponta causas e consequências), impede que a emoção nos arraste para a passividade. A cenografia de Leonardo Antunes e Márcia Moon acerta ao recusar ilustrar corredores de pedra, optando por compor planos de luz, diagonais de fluxo e campos de sombra. O espaço aqui não descreve; argumenta.

A música, assinada por Jean Pierre Kaletrianos e pelo próprio Antunes, é executada ao vivo — adufes, violino e uma engenhosa “orquestra de aquários”. Crucialmente, o som não narra o que a cena já mostra; ele pensa com ela. A alternância entre fala e canto, entre português e grego, produz um estranhamento que nos obriga a escutar as engrenagens do mito. O elenco sustenta com vigor esse desenho, transitando entre a respiração coletiva e as protagonizações episódicas. O figurino de Miko Hashimoto, com uma economia de sinais que diferencia funções sem gritar, libera a dramaturgia para operar na exposição das contradições.

  Fotos: João Maria da Silva Júnior

Em LABIRINTHOS 2.5, a disputa entre Desejo e Lei não é um melodrama moral; é um mecanismo social. A “Nova Ordem” a que o espetáculo alude nasce da disputa pela máquina que administra corpos e afetos. Se há monstro, quem o alimenta? Se há labirinto, quem desfruta dos seus corredores?

Portanto, o verdadeiro potencial do teatro, desde a sua gênese, é ser uma ferramenta para questionar, e não apenas para aceitar. A busca pelas origens não é uma mera curiosidade histórica, mas um mergulho nas fundações da autorreflexão humana. A ENERGÓS, ao apostar num teatro que devolve trabalho à plateia, lembra que pensar dá trabalho — e é um prazer. A temporada gratuita e as sessões acessíveis são a extensão política desse gesto: se o coro recoloca o público no centro do julgamento, é coerente ampliar quem pode julgar.

Saí do Arthur Azevedo com a sensação nítida de que LABIRINTHOS 2.5 assume o teatro como processo aberto para afiar a ferramenta de pensar o poder. Num país que precisa reaprender a transformar emoção em critério, a peça nos devolve uma herança poderosa: a capacidade de, coletivamente, olhar para as estruturas que nos moldam e perguntar “como podemos fazer diferente?”. Não basta assistir; é preciso julgar.

Serviço

  • Local: Teatro Arthur Azevedo — Av. Paes de Barros, 955, Mooca, SP
  • Temporada: 19 a 28/09/2025 — Qui, Sex, Sáb às 21h; Dom às 19h
  • Duração: 1h45 (com intervalo de 15 min) • Classificação: 14 anos
  • Ingressos: gratuitos (Sympla; retirada presencial até 15 min antes)
  • Acessibilidade: 25/09 (qui) com Libras e Audiodescrição

Ficha Técnica

Leonardo Antunes – Diretor, Iluminador e Ator
João Anzanello Carrascoza – Dramaturgo
Márcia Moon – Cenógrafa
Miko Hashimoto – Figurinista
Elaine Alves – Atriz
Gustavo Andersen – Ator
Gustavo Xella – Ator
Heidi Monezzi – Atriz
Isabela Bustamanti – Atriz
Jean Pierre Kaletrianos – Ator
Pedro Ferreira – Ator
Guilherme Soares – Assistente de Iluminação
Victor Isidro (Vicc) – Assistente de Iluminação

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