Cena urbana de Dois Perdidos Numa Noite Suja
Teatro

Dois Perdidos Numa Noite Suja — 90 anos de Plínio Marcos em choque vivo

Por ocasião dos 90 anos de Plínio Marcos, o Teatro do Incêndio estreou, no dia do aniversário do autor, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”. Um dos grandes textos brasileiros dos anos 1960 — e isso num período pródigo em grandes textos —, a peça se impôs como obra de choque e lucidez política.

Plínio Marcos de Barros (1935–1999) foi a voz visceral dos marginalizados e um símbolo de resistência artística sob a ditadura. “Autor maldito”, levou ao palco, com violência e ternura, o submundo de prostitutas, presidiários, catadores e trabalhadores precarizados, conferindo-lhes humanidade e complexidade. Sua virada foi temática e linguística: num Brasil onde a classe trabalhadora mal começava a aparecer em cena, Plínio colocou os mais excluídos sob os refletores e adotou a fala das ruas — gírias, palavrões, cortes bruscos — como forma e conteúdo.

Nascido em Santos e forjado em muitos ofícios, conheceu por dentro portos, prisões e ruas. Dali veio a matéria de sua dramaturgia: uma investigação sem verniz da vida espremida, faminta, exausta — e ainda assim dotada de humor, desejo e alguma ternura. Não é acaso que o quarto de pensão, a cama suja, o par de sapatos e o cheiro de suor sejam personagens; são índices de classe e de sobrevivência. Plínio faz do objeto um motor dramático: o sapato que abre promessa e armadilha, o colchão que impõe convivência repulsiva, o quarto que encarcera e expõe.

“Dois Perdidos…” é drama social realista de fricção entre miséria, humilhação e desejo de ascensão. Meio determina conduta: a pensão, a fome, o subemprego moldam o comportamento. Linguagem e ações cruas: coloquialidade, violência sem filtro, foco no cotidiano material. Objetos falam de classe — sapatos, colchão, quarto apertado — e condensam a experiência; há economia poética de emblemas. Construção de choque: o “realismo sujo” de Plínio é mais frontal, menos “observacional” que o naturalismo clássico e sem recair num mecanicismo causal; há pressão estrutural, mas também escolhas contraditórias. Não se trata de “drama psicológico” em sentido estrito: a densidade psíquica é efeito da matéria social, não sua causa.

A dramaturgia exige objetivos práticos (comer amanhã, arrumar trabalho, não ser rebaixado por Paco, proteger a própria masculinidade ferida) e organiza a cena por urgências materiais. O tempo curto, a necessidade e a humilhação abastecem a linguagem e o gesto. O espaço precisa apertar; sujeira, barulho e pouco ar são agentes dramáticos que empurram a ação. É nesse atrito que aparece a parcela de humor negro — nunca ornamental — e lampejos de ternura — nunca conciliadores.

Sob direção de Marcelo Marcus Fonseca, o texto permanece no quarto de pensão e ganha um desenho cênico frontal: atuações em primeiro plano, fricção de corpos, um silêncio que pesa e uma música que pulsa no nível da respiração dos atores. Nada busca “embelezar” a pobreza; a cena insiste na materialidade concreta (um colchão gasto, paredes descascadas, um par de sapatos que organiza o desejo e a humilhação) e deixa que público e texto estabeleçam suas próprias conexões, sem didatismo redundante.

Manter a língua original — gírias, construções sintáticas, palavrões — é parte do sentido político da obra. Não se trata de folclorizar a fala “popular”, mas de reconhecê-la como registro vivo da história social do país: a língua carrega os estigmas e a violência de classe, e qualquer “polimento” trairia a ética do texto. O arcaísmo da fala denuncia o arcaísmo da miséria e, por contraste, atualiza nossa responsabilidade histórica.

Em chave materialista, a peça demonstra que a consciência e os afetos são produzidos socialmente: a vergonha, o rancor, a vontade de subir na vida e o gozo de humilhar o outro emergem de um regime de escassez e competição. A violência não aparece como efeito colateral, mas como idioma de um mundo precarizado; o humor, quando irrompe, é a válvula que impede a explosão total — e por isso mesmo não pacifica nada. A cada repetição do gesto de sobrevivência, a cena faz ver a engrenagem e a peça se afirma como manifesto dialético dessa persistência.

Teatro e política se reconectam quando recolocamos o corpo na materialidade do tempo e do trabalho. “Dois Perdidos…” permanece necessário porque recusa a conciliação fácil: joga luz onde doem as estruturas e nos lembra que, apesar delas, ainda se sonha caminhar com os próprios sapatos.

Ficha Técnica

  • Texto: Plínio Marcos.
  • Direção: Marcelo Marcus Fonseca.
  • Elenco: André Pottes e Marcelo Marcus Fonseca.
  • Direção musical: André Pereira Lindenberg (Dedéco).
  • Direção de produção: Vanda Dantas.
  • Iluminação: Rodrigo Sawl.
  • Figurino: Alison Falconeres.
  • Cenografia: Marcelo Marcus Fonseca e Dan Maaz.
  • Músicos: André Pereira Lindenberg — Dedéco (percussão) e Xantilee Jesus (baixo elétrico).
  • Assistência de direção: Amy Campos, Lívia Melo e Mariana Peixoto.
  • Fotos: Bob Sousa e Kym Kobaiashi.
  • Mídias sociais: Amy Campos e Anna Bia Viana.
  • Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação.
  • Idealização: Cia. Teatro do Incêndio.
  • Coordenação administrativa e gestão cultural: Colmeia Produções.
  • Vivência Artística: Anna Bia Viana, Ana Ferrari, Dan Maaz, Giovanna Garcia, Giullia de Láuro, Kyla, Laura Morena, Mariana Peixoto e Rafaela Yamamoto.
  • Projeto: Aumentar É Aumentar-se — Edital Fomento CULTSP PNAB Nº 38/2024 — Manutenção e Modernização de Espaços Culturais — ProAC, Programa de Ação Cultural, da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo.

Tags: Plínio Marcos; teatro político; realismo de choque; dramaturgia brasileira

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