O Mercador de Veneza no Tucarena: A Tragédia do Capital na Falsa Comédia de Shakespeare
6 de outubro de 2025
A opção central e mais radical desta montagem é o reposicionamento de Shylock, do status de vilão antissemita para o de protagonista trágico. A montagem compreende o paradoxo: o dramaturgo herda os estereótipos antissemitas da avareza e da implacabilidade, mas injeta neles as contradições de uma personagem que entende as contrações do ambiente em que está inserida.
Shylock não é uma caricatura, mas um homem visceralmente marcado pela violência social. Vemos sua dor ao ser cuspido por Antônio, seu desespero ao ser abandonado pela filha, Jessica, e sua fria decisão de usar as únicas armas que o sistema lhe concede — o contrato e a lógica financeira — para se vingar. O célebre monólogo — “Se nos furar, não sangramos?… Se nos envenenar, não morremos?” — sempre consciente de como a sua “diferença” é instrumentalizada pelo poder.

Este Shylock ganha contornos ainda mais precisos. Ele é a encarnação do capital financeiro primordial, a face necessária mas desprezada de um sistema que o cristão Antônio, o capitalista mercantil, desdenha publicamente mas do qual depende na prática. O contrato da libra de carne é a materialização mais literal e grotesca do fetichismo da mercadoria: a vida humana é reduzida a um colateral, um puro valor de troca. A exigência de Shylock é, portanto, uma luta de classe distorcida: ele luta contra o sistema utilizando a lógica desumana do próprio sistema, e é por ela que será aniquilado.
A decisão de ambientar a peça nos anos 1990 é um acerto. Longe de ser uma mera escolha estética, os anos 90 foram o auge ideológico do capitalismo globalizado, a era do “Fim da História” e da crença dogmática nos mercados desregulados. Ao transpor a Veneza renascentista — a praça financeira seminal dpara este contexto, a encenação conecta a gênese do capitalismo com o seu ápice triunfalista.
A “cidade-porto” transforma-se numa praça financeira global, uma rede de crédito e risco. Nesse cenário, a libra de carne deixa de ser uma curiosidade jurídica arcaica e se torna uma metáfora poderosa para os instrumentos financeiros abstratos e letais que circulam no capitalismo contemporâneo.

Na cena do tribunal, Pórcia, disfarçada de doutor Balthazar, não surge como uma heroína restabelecendo a justiça, mas como a personificação da astúcia do poder.
Ela primeiro apela para um discurso de misericórdia, que soa, nesta encenação, não como uma súplica sincera, mas como a retórica moralizante que a classe dominante pode proferir de sua posição segura. Quando Shylock rejeita essa moralidade, Pórcia abandona a máscara da compaixão e ataca com a arma mais eficaz: a letra da lei. Ela vence Shylock não por ser mais justa, mas por ser mais hábil na manipulação do instrumento jurídico que sustenta a própria ordem que a beneficia.
O Estado (o Duque) e a Lei (Pórcia) revelam-se como aparelhos ideológicos cuja função última é proteger a classe no poder. Eles não intervêm para negar a lógica do contrato, mas para aplicá-la de forma a salvar o capitalista “legítimo” (Antônio) e aniquilar o capitalista “usurário” (Shylock). A conversão forçada ao cristianismo é o golpe final: não basta destruí-lo economicamente; é preciso apagar sua identidade.
Toda escolha implica em um sacrifício, e a opção por este eixo crítico e centrado em Shylock tem o seu — um custo que a encenação assume com honestidade e que se revela, ele próprio, analítico.
A primeira vítima é o brilho tradicional de Pórcia. Uma das personagens femininas mais inteligentes e com maior autonomia em Shakespeare, ela vê sua astúcia e seu triunfo forense serem cooptados pela lógica do sistema. Sua luz não ilumina a justiça, mas a engrenagem do poder. Esta não é uma falha, mas uma consequência coerente da tese da montagem.

A segunda e mais profunda consequência é a transformação do gênero da peça. O final, com as notícias da salvação dos navios de Antônio e as brincadeiras dos anéis, não consegue gerar alívio ou alegria. Pelo contrário, soa como uma “falsa comédia”, um epílogo artificial e vazio encenado pelos vencedores. A festa em Belmont não é um espaço de reconciliação, mas um oásis de privilégio que ignora convenientemente a violência e a destruição que ocorreram em Veneza. A ordem foi restaurada, mas a um custo moral que a invalida.
A montagem do Tucarena, sob a direção de Daniela Stirbulov, a adaptação de Bruno Cavalcanti e um elenco afinado, liderado pela atuação segura de Dan Stulbach, faz mais do que apresentar Shakespeare. Ela nos convida a relê-lo.
Isto ocorre no palco, mas o público atento e contemporâneo não pode deixar de traçar um paralelo entre o destino do “outro” na peça e o que o governo de Israel faz atualmente na Faixa de Gaza. O solilóquio de Shylock, que serve de régua e compasso para esta montagem, caberia também na voz dos palestinos, o que torna ainda mais absurdas as tentativas do primeiro-ministro de buscar um bode expiatório — uma repetição histórica da perseguição sofrida pelo povo judeu em diferentes épocas. Não podemos culpar o povo Judeu, pelas ações do governo Israelense, mas não podemos fazer ouvidos moucos para o que ocorre naquela região.

Este “Mercador de Veneza” é um espetáculo que, ao optar pela complexidade em detrimento do consolo, pela crítica em vez da celebração, devolve a Shakespeare sua potência conflituosa. Ele nos lembra que, por baixo do brilho enganoso da comédia, muitas vezes se esconde a tragédia real do capital e da injustiça — uma lição tão verdadeira na Veneza do século XVI quanto na São Paulo do século XXI.
Ficha Técnica
- Texto: William Shakespeare.
- Direção: Daniela Stirbulov.
- Tradução, Adaptação e Assistência de Direção: Bruno Cavalcanti.
- Elenco / Personagem: Dan Stulbach (Shylock), Augusto Pompeo (Duque), Amaurih Oliveira (Lorenzo e Príncipe de Marrocos), Cesar Baccan (Antônio), Gabriela Westphal (Pórcia), Júnior Cabral (Graciano), Marcelo Diaz (Lancelotte Gobbo), Marcelo Ullmann (Bassânio), Marisol Marcondes (Jéssica), Rebeca Oliveira (Nerissa), Renato Caldas (Solânio e Tubal) e Thiago Sak (Salarino e Príncipe de Aragão).
- Cenografia: Carmem Guerra.
- Cenotécnico: Douglas Caldas.
- Desenho de Luz: Wagner Pinto e Gabriel Greghi.
- Figurino e Visagismo: Allan Ferc.
- Assistente de Figurino: Denise Evangelista.
- Peruqueiros: Dhiego Durso e Raquel Reis.
- Direção de Movimento: Marisol Marcondes.
- Aderecista: Rebeca Oliveira.
- Baterista: Caroline Calê.
- Consultoria Sobre Shakespeare: Ricardo Cardoso.
- Vídeo e Imagem: André Voulgaris.
- Fotos: Ronaldo Gutierrez.
- Design Gráfico: Rafael Oliveira Branco.
- Operação de Luz: Jorge Leal.
- Operação de Som: Eder Sousa.
- Motorista: Cosme Araujo.
- Assistente de Produção: Amanda Nolleto.
- Produção Executiva: Raquel Murano.
- Direção de Produção: Cesar Baccan e Marcelo Ullmann.
- Produção: Kavaná Produções e Baccan Produções.
- Realização: Ministério da Cultura e APSEN.
- Patrocínio: APSEN.
- Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes.
Serviço
O Mercador de Veneza
TUCARENA – Teatro da PUC-SP (Entrada pela Rua Bartira, s/n, esquina com a Rua Monte Alegre, 1024).
Capacidade: 288 lugares. Classificação: 12 anos. Duração: 95 minutos.
Temporada: de 04 de outubro a 14 de dezembro de 2025. sextas e sábados, 21h e domingos, 18h. (obs: não haverá sessão nos dias 17 a 19 de outubro e 7 a 9 de novembro)
Vendas: Sympla ou na bilheteria do teatro. Bilheteria: de terça a sábado das 14h às 20h e domingos das 14h às 18h.


