Por um Pingo
Circo-teatro, suspense e o direito de reconhecer-se em cena
Há um gesto claro em Por um Pingo: partir de uma banalidade doméstica — a mancha de mofo que cresce no teto, anunciando o gotejar — e, sem sinais de grandiloquência, convertê-la em alegoria de uma cidade que vaza por dentro. O Teatro Manás organiza esse percurso com dois códigos assumidos: a legibilidade do circo-teatro (tipos, triangulação, precisão do gesto em plano largo) e procedimentos de suspense (o fora-de-campo sonoro, a progressão por pequenas ameaças, a contenção dos movimentos). O resultado observado é um estado de atenção prolongada da plateia — uma vigília sem estardalhaço — em que a comicidade se apresenta mais como acidez do que como riso aberto. A sessão cheia permanece colada ao jogo de cena; ri pouco, pensa muito.
A dramaturgia de Dante Passarelli — que declara, no programa, sua conversa com Walter Benjamin — opera o que Brecht chamaria de deslocamento do objeto: o pingo não é mera contingência do apartamento; é operador histórico. “A história tem a forma da água”, lê-se no material do espetáculo. A fórmula atua em cena de modo concreto: a água infiltra, dissolve, revela camadas. A mancha cresce, os pingos se acumulam, e a ameaça doméstica expõe a precariedade estrutural de uma urbanidade vendida à especulação e às suas pequenas violências diárias. Quando o homem chamado para consertar o teto desaparece, o edifício devolve o passado que tentou soterrar; o presente fica suspenso, como se a casa — símbolo de estabilidade — se convertesse em laboratório do desamparo.
A encenação de Fernanda Zancopé não mascara seus instrumentos. Do circo-teatro, vem a decisão por tipos em lugar de psicologia, a triangulação que inclui a plateia como terceiro vértice e a precisão rítmica que oferece legibilidade à distância. Do suspense, vem a economia de movimento, a administração da expectativa, o uso minucioso do som. As duas matrizes não se fundem num estilo único; convivem.

Há um terceiro elemento que atravessa a cena sem se anunciar como programa: o expressionismo como acento plástico. A luz lateral que recorta os corpos, o apartamento envelhecido tratado como organismo deformado, certos gestos angulosos — tudo isso cria zonas de contato com a estética expressionista, não por filiação direta, mas por analogia de procedimento. Tanto o circo-teatro quanto o expressionismo alemão operam por antinaturalismo: rejeitam a mimese realista, trabalham com tipos sociais, fazem do corpo um signo legível à distância. A diferença está na função do exagero: no circo, ele serve à comunicabilidade e ao melodrama; no expressionismo, à deformação crítica da modernidade. O que Por um Pingo faz é instrumentalizar essa convergência: usa a clareza do circo e a angulação expressionista para criar uma imagem da precariedade urbana que dispensa psicologia e aposta no choque visual contido. Quando a luz recorta e o corpo se angula, o cotidiano se deforma o bastante para tocar esse território — não como programa integral, e sim como recurso pontual que torna a fissura social visível sem necessidade de discurso. O espetáculo prefere a construção paciente da atenção à promessa de catarse. Daí seu regime de fruição: concentração e reconhecimento, comedimento cômico e vigilância do olhar.
O elenco trabalha como conjunto: há escuta entre os intérpretes, desenho corporal calculado e controle de pausas. O riso, esperado por alguns sinais do código circense, surge rarefeito. A razão, no que se vê, está menos no desempenho e mais na forma escolhida: o suspense regula o tempo da recepção, e a acidez desloca a piada para a zona do patético. O público permanece cúmplice, mas não explode. Nesse sentido, Por um Pingo termina por investigar o limite contemporâneo da comédia frente à experiência urbana — não como tese proferida, e sim como constatação prática: há momentos em que o riso cede espaço a um pensar sem alívio.

É pela chave crítica de O direito à literatura, de Antonio Candido, que se pode indicar o alcance do espetáculo. Nesse ensaio decisivo, Candido sustenta que a fruição estética não é luxo de classe, mas necessidade humana constitutiva — dimensão do que nos organiza como sujeitos e como coletividade. Trazido para a cena, esse princípio não se traduz em paternalismo, tampouco em pedagogia: traduz-se em acesso simbólico. Por um Pingo pratica esse acesso por dois caminhos simultâneos. Primeiro, pelo código legível: o circo-teatro abre a leitura sem sacrificar a complexidade, convidando o público a compartilhar o mesmo vocabulário de sinais. Segundo, pela matéria comum: o apartamento, o mofo, a goteira, o técnico que some — nada disso exige repertório prévio; exige atenção ao que todos reconhecem. O que acontece, então, não é simplificação do mundo, mas democratização do imaginário: a cidade entra no palco como experiência partilhada, e o palco devolve à cidade uma forma de consciência.
Nada disso faz de Por um Pingo uma obra programática. Ao contrário: o espetáculo trabalha sem slogan, confia na imagem insistente (a mancha que cresce) e na partitura de contenção para que a leitura social surja no tempo da cena. Esse exercício — de apostar no público sem sublinhar — explica a resposta observada: poucos risos e atenção contínua. É um pacto com consequências: pede ao espectador o mesmo rigor que oferece, e encontra, em troca, uma escuta curiosa, mais reflexiva do que eufórica.

Ao sair, permanece a impressão de que o Teatro Manás expõe a engrenagem da vida urbana por meio de uma construção que evita o panfleto: não recorre à tese explícita, mas estrutura a percepção. A casa é um organismo frágil; a água, a forma do tempo histórico; a cidade, um sistema de infiltrações. Nessa economia de meios, Por um Pingo cumpre uma função pública que Candido reconheceria sem esforço: oferecer linguagem para a experiência, isto é, garantir que a comunidade possa ver-se e pensar-se em cena. Não se exige do teatro que resolva nada; exige-se que forme — no sentido alto do termo —, que dê forma ao que nos sucede. O espetáculo faz isso com sobriedade, coerência interna e clareza de código.
Se a comédia aparece menos do que anunciado em alguns momentos, não se trata de falha de intenção, mas de efeito do arranjo: o suspense, ao modular o tempo, prefere a vigilância ao estouro. E, diante do que a peça olha — precariedade tornada norma, medo em circulação, cidade à venda —, talvez a escolha pela concentração seja, hoje, a medida exata do riso possível. Em qualquer caso, o que está dado é um teatro que confia no público e trabalha com ele, não contra ele. O direito à arte, para lembrar Candido com precisão, realiza-se aqui como direito de reconhecer-se no palco e, reconhecendo-se, interrogar o próprio tempo. O teto pinga. A cena, atenta, escuta. E o espectador, sem alarde, entende.
Ficha técnica:
Dramaturgia – Dante Passarelli.
Direção Geral – Dante Passarelli e Fernanda Zancopé.
Elenco – Ana Paula Lopez, Cris Lozano, Ernani Sanchez/Diego Chilio e Fernando Aveiro.
Trilha Sonora – Ale Martins.
Cenografia – Julio Dojcsar.
Desenho de Luz – Aline Santini.
Figurino – Silvana Marcondes.
Orientação em Técnicas de Circo-Teatro – Fernando Neves.
Desenho de Vídeo – Marcelo Moraes.
Assistente de Figurino – Rud Fiamini.
Operação de Luz e Vídeo– Fernanda Zancopé,
Operação de Som – Ale Martins
Fotos e Vídeo – Jamil Kubruk.
Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta.
Produção – Anayan Moretto.
Produção Executiva – Marcelo Leão. Apoio – Armazém da Luz e OdontoPratic.
Realização – Manás Laboratório de Dramaturgia.


